Alienação de bens.
A resposta à questão acima aparenta simplicidade e admite como respostas: 1) na pessoa física, o ganho de capital na alienação de bem é calculado a partir da diferença positiva entre o valor de alienação e o custo de aquisição, permitindo-se, no caso de imóveis, a redução do ganho em função da data de aquisição; 2) na pessoa jurídica, o ganho de capital na alienação de bem é calculado com base no valor contábil, líquido da correspondente depreciação, amortização e exaustão acumuladas.
A pergunta por nós proposta e a solução apresentada objetivam introduzir um debate relevante e sempre presente, que é o efetivo custo de aquisição de um bem quando, entre a data de sua aquisição e a de sua alienação, ocorreu um período de inflação. No caso da pessoa física, normas ocasionais admitiram fatores de redução no ganho tributável, mas as pessoas jurídicas devem utilizar o custo de aquisição líquido, para fins de apuração do ganho de capital, desprezando-se quaisquer outros efeitos, ainda que notórios, da inflação, por vedação legal para assim fazê-lo.
A pretendida reforma do Imposto sobre a Renda e da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL), constante do Projeto de Lei n° 2.337/21, toca no cálculo do ganho de capital quando impõe a obrigação de se avaliar a mercado bens utilizados na liquidação de lucros/dividendos e na devolução de capital, hipóteses em que a diferença entre o valor de custo e o de mercado dos bens deverá ser objeto de tributação na pessoa jurídica. Para a pessoa física, o projeto admite a possibilidade de atualizar o valor de bens imóveis, sendo que a diferença entre o valor do bem atualizado e o seu custo de aquisição, constante da última declaração de ajuste, será tributada à alíquota de 4%, não admitida nenhuma redução à base de cálculo.
Essa não é a primeira vez em que se admite, para a pessoa física, que o custo de bens imóveis pode estar defasado diante do cenário econômico, de tal sorte que tributar como ganho de capital, em eventual alienação, a diferença entre o custo de aquisição e o valor de alienação representaria tributação de patrimônio, confiscatória pela inexistência de ganho efetivo, mas, sim, de desvalorização do bem. Assim, a Lei n° 7.713/88, em seu artigo 18, admitiu para a apuração do valor a ser tributado, na alienação de imóveis, a aplicação de um percentual de redução sobre o ganho de capital apurado, segundo o ano de aquisição ou incorporação do bem, de acordo com tabela que remonta a aquisições efetivadas no ano de 1969. A Lei n° 8.383/91 autorizou, em seu artigo 96, que no exercício financeiro de 1992 o contribuinte apresentasse declaração de bens na qual os bens e direitos seriam individualmente avaliados a valor de mercado, no dia 31/12/1991, e convertidos em quantidade de UFIR pelo valor desta no mês de janeiro de 1992. Nesse caso, a diferença entre o valor de mercado e o constante de declarações de exercícios anteriores seria considerado rendimento isento.
Mais recentemente, a Lei n° 11.196/05, artigo 39, isentou do imposto sobre a renda o ganho auferido por pessoa física residente no país na venda de imóveis residenciais, desde que no prazo de 180 dias da celebração do contrato, se aplicasse o produto da venda na aquisição de imóveis residenciais localizados no país, sendo que o contribuinte pode usufruir desse benefício uma vez a cada cinco anos. Além disso introduziu, em seu artigo 40, para fins de apuração da base de cálculo do imposto sobre a renda, na alienação de bens imóveis, por residentes, fatores de redução do ganho de capital a ser tributado.
Essas soluções do legislador na apuração de ganho de capital da pessoa física tiveram por objetivo evitar que fosse tributado um ganho inexistente, pois em tempos de inflação o bem se manteve registrado no patrimônio do contribuinte por seu custo de aquisição, não sendo atualizado, a despeito da perda de valor da moeda. De forma diversa, as pessoas jurídicas, desde a entrada em vigor da Lei n° 6.404/76, podiam atualizar seu patrimônio com o mecanismo de correção monetária de balanço, de tal sorte que o ganho de capital na alienação de bens era calculado sobre o custo original, ajustado por depreciações, amortizações ou exaustões, e corrigido monetariamente.
Com a introdução do Plano Real e a edição da Lei n° 9.069/95, o Brasil logrou controlar a hiperinflação, vedando-se a contratação com cláusula de correção monetária, por qualquer índice diferente da variação de preços, nos termos do seu artigo 24. Por fim, o artigo 4º, da Lei n° 9.249/95, revogou a correção monetária das demonstrações financeiras, vedando-se a utilização de qualquer sistema objetivando sua atualização, inclusive para fins societários.
O objetivo do Plano Real era estancar a indexação da economia, reputada como o principal fator a levar à inflação. No que respeita a esse propósito ele foi exitoso, conquanto uma inflação miúda tenha se mantido ao longo do tempo, como se observa dos índices oficiais que a registram e, nos últimos anos, tenha se acentuado por conta de problemas econômicos, fiscais e sanitários que o país vive. A inflação, portanto, não é fato econômico novo no Brasil, bem como seu desdobramento, a hiperinflação, situação em que a inflação foge do controle subindo a patamares elevadíssimos, assim levando a moeda a perder todo o seu poder de compra.
Nos termos do Banco Central do Brasil, inflação significa um aumento generalizado dos preços na economia que faz com que a moeda perca seu poder aquisitivo. Com isso, os bens registrados por essa moeda também perdem seu valor original, surgindo, daí, a constante alta dos preços exigindo-se, para medi-la, que sejam construídos índices que tomam uma média de diversos preços de modo a resumir essa alta, em um único número.
Como já dito, embora controlada, há uma inflação subjacente de tal sorte que a moeda vem perdendo seu poder de compra e, como consequência, o custo dos bens registrados nessa moeda vem lentamente perdendo sua substância. É interessante observar que, de forma a retratar que a inflação segue corroendo o poder de compra da moeda, o próprio governo federal remunera os papéis que emite, como é o caso da Nota do Tesouro Nacional (NTN-B) conjugando o Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) e os juros. Com a aplicação do IPCA, o Tesouro garante proteção para o capital do investidor em títulos públicos, diante da inflação.
A aceitação dessa realidade não é fácil e foi longa e exaustiva a batalha que se travou junto ao Poder Judiciário para o reconhecimento dos efeitos da inflação em diversos negócios jurídicos, com o único propósito de demonstrar que a correção monetária era apenas a atualização do custo de bens e direitos que, pela deterioração da moeda, não mais os representavam. Hoje, pode-se dizer que os tribunais a reconhecem, ainda que não tenha sido pedida, como se observa no Recurso Extraordinário n° 220.605-9, no qual o Supremo Tribunal Federal admitiu como legítima a correção monetária de valores a liquidar em decisão judicial, embora não tenha sido pedida na inicial nem estipulada em sentença.
A Contabilidade desde há muito aceitou esse fenômeno, Instrução CVM n° 64/87, e, mais recentemente, vem trazendo recomendações para as demonstrações financeiras preparadas em economias que estão em situação inflacionária. O pronunciamento contábil do CPC n° 42, de 21/12/2018, trata de “Contabilidade em Economia Hiperinflacionária”, esclarecendo em seu item 2, alcance, que “em economia hiperinflacionária, a demonstração do resultado e o balanço patrimonial em moeda local sem atualização monetária não são úteis. O dinheiro perde poder aquisitivo de tal forma que a comparação dos valores provenientes das transações e outros eventos que ocorreram em épocas diferentes, mesmo dentro do mesmo período contábil, é enganosa”.
Esclarece o CPC que não pretende estabelecer uma taxa absoluta em que se considere o surgimento da hiperinflação, ao contrário, a ocasião em que a atualização monetária das demonstrações contábeis se torna necessária é uma questão de julgamento. Indica, porém, algumas características do ambiente econômico de país que podem mostrar a existência de hiperinflação: “a) a população em geral prefere manter sua riqueza em ativos não monetários ou em uma moeda estrangeira relativamente estável. (…);b) a população em geral considera os valores monetários não em termos da moeda local, mas em termos de uma moeda estrangeira relativamente estável (…);c) as compras e as vendas a crédito ocorrem a preços que compensam a perda esperada do poder aquisitivo durante o período do crédito, ainda que esse período seja curto; d) as taxas de juros, salários e preços são atreladas a um índice de preços; e e) a taxa de inflação acumulada no triênio se aproxima ou excede 100%” (grifos da autora).
O Pronunciamento CPC n° 42 recomenda que tal atualização monetária se faça com base em índice geral de preços que reflita as mudanças no poder aquisitivo geral. Destaque-se que esse pronunciamento atende aos padrões internacionais de contabilidade, IFRS, não se podendo afirmar, pois, que a elaboração das demonstrações financeiras atreladas a um índice preços seja idiossincrasia brasileira em detrimento de boas práticas.
A variação do IPCA, no período entre 1/1995 e 6/2021, foi de 5,67, de tal forma que um capital de R$ 100 em 1/1995 equivale a R$ 567 em 6/2021, sem cômputo de juros. Por conclusão lógica, se uma determinada pessoa tivesse guardado R$ 100 em dinheiro em 1995, o poder de compra dessa quantia de moeda seria hoje, apenas e tão somente, de R$ 17,63!!!
Ora, diante disso, os tratamentos preconizados pela lei vigente e pelo projeto na apuração de ganho de capital envolvem uma falácia, pois não há, a nosso ver, ganho a ser tributado se a economia apresentar um cenário inflacionário como nos parece ser o caso. Essa afirmativa não é leviana e está sustentada nas considerações acima, especialmente que a inflação vem se acumulando, sem que o contribuinte disponha de remédio eficaz contra ela. Não se pode afirmar, no caso das pessoas físicas, que o uso de fatores de atualização elimine os nefastos efeitos inflacionários, pois as reduções autorizadas podem ficar muito aquém da inflação acumulada.
O aceno feito pelo projeto, no sentido de que as pessoas físicas paguem imposto sobre a renda, antecipadamente, relativamente a ganhos de capital futuros, à razão de 4%, sem qualquer das reduções previstas em lei, resultará, certamente, no pagamento, ainda que voluntário, de um tributo sem efetiva base de cálculo, pois a rigor é possível comprovar que não há ganho a ser tributado, tratando-se de mera atualização do custo de aquisição.
No geral, a tributação do ganho de capital na alienação de bens imóveis e móveis, pela pessoa física, a despeito dos redutores previstos em lei, ofende o princípio da capacidade contributiva e sua demonstração é simples: basta converter o custo de aquisição em moeda constante e compará-lo com o valor de venda. É imperioso considerar as desvalorizações que os bens tenham sofrido por conta da inflação e tributar apenas a parcela remanescente, essa, sim, ganho efetivo.
Com isso, o ideal seria que o projeto permitisse, a exemplo da Lei n° 8.383/91, que a pessoa física fizesse uma atualização do bem, considerando um índice de preço autorizado, por sua conta e sob sua responsabilidade, sendo isentado o correspondente acréscimo, cabendo ao Fisco, exigir a comprovação dos valores apurados.
No que tange às determinações de exigir que a devolução de capital e a liquidação de dividendos em bens se façam a valor de mercado, além de não haver renda efetivamente auferida pelo sócio, nesse momento, tampouco a sociedade pode atualizar seu custo de aquisição por impedimento da Lei n° 9.249 de corrigir monetariamente suas demonstrações financeiras, a despeito de as práticas contábeis assim o autorizarem. Com isso, a exigência fiscal quer se aproveitar do impedimento do contribuinte de corrigir suas demonstrações financeiras, exigindo a geração de um ganho tributável que não se coaduna com os princípios constitucionais aplicáveis. Trata-se de forma indireta de introduzir uma tributação sobre o patrimônio, não autorizada.
Acresça-se que a atualização de um bem tampouco é o valor de mercado que se pode verificar em uma transação entre partes independentes, o chamado valor justo, pois ele também poderá estar contaminado por uma parcela, pelo menos, de inflação. O uso do valor justo, como custo de aquisição, para fins de cálculo do ganho de capital deve ser visto com reserva.
Como se observa, a inflação é fenômeno presente, reconhecido pelo poder público quando capta recursos, mas ignorada para fins de atualização do custo de aquisição de bens quando se trata de apurar o ganho de capital a ser tributado. Por fim pelo que se depreende da lógica do Banco Central, custo de aquisição, em situação inflacionária, não se presta como elemento base para apuração de eventual ganho de capital tributável.
Com isso pode-se concluir que nada autoriza alterar o artigo 22 da Lei n° 9.249 garantindo-se às partes o direito de escolherem o critério que vai orientar o negócio, valor contábil, assim permitindo-se diferir o pagamento do tributo para o momento em que, de fato, a renda é realizada ou valor de mercado, com suas consequências assumidas, inclusive as inflacionárias. Pelas mesmas razões afasta-se a tentativa de tributar ganhos na liquidação de dividendos em bens.
Em suma, nenhuma dessas mudanças propostas no projeto ao contribuinte, pessoa física ou jurídica, beneficia, interessando, isso, sim, a possibilidade de não tributar a mera correção monetária como renda. Certamente que o Congresso Nacional saberá entender essa situação no exame do Projeto de Lei n° 2.337, havendo também muito o que refletir sobre a legislação vigente quanto ao efetivo ganho de capital.