Fé pública na era digital: até onde vai a confiança no e-Notariado?

Análise crítica e propositiva sobre o e-Notariado, explorando seus avanços, riscos e a reconstrução da fé pública no ambiente digital, com base em experiências internacionais

Introdução – Quando a fé pública se transfere para o digital: Confiança, ruptura e reinvenção

A fé pública é, por definição, um valor ancorado na figura do notário – um profissional investido pelo Estado para atribuir autenticidade a declarações e atos jurídicos. Historicamente, ela dependeu da presença física, da assinatura manuscrita e do contato pessoal entre as partes e o tabelião. Com a digitalização dos serviços notariais e a consolidação do e-Notariado, essa dinâmica mudou de forma radical: a fé pública passou a operar remotamente, mediada por certificados digitais, plataformas criptografadas e videoconferências autenticadas.

Essa transformação não é meramente operacional – é estrutural. Estamos assistindo à reconfiguração do próprio conceito de autenticidade, deslocando a confiança do vínculo presencial para o design e a segurança de sistemas eletrônicos. Em outras palavras: a assinatura reconhecida por firma deu lugar à confiança algorítmica.

Mas até onde podemos empurrar esse limite? A nova era da fé pública digital levanta questões ainda em aberto:

  • O certificado digital e a videoconferência são suficientes para garantir a higidez do ato?
  • A ausência física do notário compromete sua capacidade de detectar vícios de vontade?
  • O sistema brasileiro está tecnologicamente preparado para lidar com fraudes mais sofisticadas, como deepfakes e identidades sintéticas?

O presente artigo analisa os benefícios e riscos jurídicos do e-Notariado, com especial atenção para os mecanismos de segurança, os pontos vulneráveis e os parâmetros adotados internacionalmente. Em jogo, não está apenas a modernização dos serviços cartoriais, mas a própria legitimidade da fé pública no século XXI.

As promessas do e-Notariado – Agilidade, segurança e desjudicialização

A implantação do e-Notariado, sob regulação do CNJ e operacionalização pelo Colégio Notarial do Brasil, nasceu com um discurso de modernização institucional: reduzir burocracias, facilitar o acesso a atos notariais e, sobretudo, digitalizar com segurança jurídica.

Entre os principais argumentos favoráveis, destacam-se:

Agilidade sem deslocamento

A eliminação da exigência de presença física permite que atos como escrituras públicas, procurações e autenticações sejam lavrados de forma remota, com rapidez e economia de tempo. O cartório “passa a caber na palma da mão”.

Segurança baseada em tecnologia certificada

A autenticação dos usuários via certificado digital ICP-Brasil e biometria facial, aliada à gravação integral da videoconferência notarial, compõe um protocolo rígido. Não se trata de uma simples chamada de vídeo – mas de um processo estruturado, documentado e com valor jurídico presumido.

Potencial desjudicializante

Ao viabilizar usucapião extrajudicial, inventário e partilha por escritura, divórcios consensuais e diversos outros atos diretamente na esfera notarial, o e-Notariado fortalece a via extrajudicial e contribui para a tão falada desjudicialização da vida civil.

Inclusão territorial e democratização do acesso

Municípios carentes de estrutura cartorial tradicional – ou cidadãos com mobilidade reduzida – ganham acesso a atos antes inacessíveis. A universalização dos serviços notariais deixa de ser uma promessa abstrata e se aproxima da realidade.

Exemplo prático real: Uma escritura pública de doação entre partes em Brasília e Manaus, feita totalmente online, em menos de 1 hora, com validação mútua e assinatura digital – um cenário impensável há poucos anos.

Mas como todo avanço rápido, a sofisticação técnica impõe um novo ponto de tensão: quanto mais se confia na tecnologia, mais se exige dela. E é aí que começamos a ver o outro lado da moeda.

Desafios da fé pública digital – Riscos reais, respostas institucionais

A transição da fé pública para o meio digital não elimina os riscos – apenas os reconfigura. O que antes dependia da presença física e da intuição profissional do notário agora passa a exigir infraestrutura tecnológica robusta, capacitação constante e protocolos de verificação compatíveis com a era da informação. O desafio é claro: manter a confiança social no serviço notarial, mesmo quando ele se realiza a distância.

A responsabilidade continua sendo humana, mesmo que o meio seja digital

É um erro pensar que o notariado digital transfere a fé pública para a máquina. Ao contrário: a plataforma é instrumento, mas a autoridade permanece com o notário, que continua responsável por aferir a identidade, a capacidade e a vontade das partes – mesmo remotamente.

A videoconferência notarial, com gravação obrigatória, não é uma formalidade superficial: ela substitui o ambiente físico por um ambiente controlado, em que o notário analisa sinais verbais e não verbais, podendo inclusive recusar o ato se tiver dúvidas sobre sua legitimidade.

As ameaças digitais existem – mas o sistema tem dado respostas

Fraudes digitais, uso indevido de certificados e tentativas de manipulação de identidade são riscos reconhecidos. Mas o e-Notariado tem evoluído rapidamente para enfrentá-los, com:

  • Biometria facial cruzada com bases oficiais, como Denatran e Receita Federal;
  • Gravação de todas as etapas do ato, criando um rastro probatório que não existe no papel;
  • Auditorias, painéis de controle e integração com sistemas de verificação externa.

Além disso, tabeliães experientes têm se adaptado com rapidez, demonstrando que a essência da fé pública – cautela, diligência e responsabilidade – é totalmente compatível com o ambiente digital.

Fé pública digital: Uma construção em andamento, e já promissora

O crescimento exponencial dos atos eletrônicos em cartórios brasileiros mostra que há confiança social na atuação do notariado, mesmo em formato remoto. A adesão tem sido especialmente alta em:

  • Inventários e divórcios extrajudiciais, feitos com segurança e rapidez;
  • Procurações para transações complexas, com validação instantânea;
  • Reconhecimento de firma digital, que evita deslocamentos sem abrir mão da segurança.

O desafio não é o da substituição do notário pela tecnologia, mas sim o da reinterpretação da fé pública para o século XXI, com o notariado liderando essa transformação.

O Brasil não está atrasado – Está na vanguarda da fé pública digital

Ao contrário do que muitos imaginam, o Brasil não é um espectador passivo na digitalização dos atos notariais – é protagonista. O e-Notariado, com sua base legal sólida, integração à ICP-Brasil e validação por biometria facial, já é modelo de segurança institucional que rivaliza com iniciativas internacionais mais antigas.

O que o mundo tem feito:

  • Estônia: Vanguarda digital total, mas com base em identidade estatal única e centralizada – algo ainda distante da realidade brasileira.
  • Canadá e França: Reconhecem atos remotos, mas com abrangência limitada e forte dependência da atuação de cartórios privados ou notários “digitais”.
  • EUA: Variedade de regimes estaduais, com predominância de plataformas privadas e baixo controle estatal.

O diferencial brasileiro: Fé pública com controle, responsabilidade e alcance nacional.

Enquanto outros países fragmentam o serviço notarial digital, o Brasil avança com unificação normativa, interoperabilidade e responsabilidade funcional clara. O tabelião continua sendo o centro da confiança – agora potencializado pela tecnologia.

O e-Notariado não é um experimento: É uma política pública de segurança jurídica digital em escala nacional. E isso, hoje, nenhum outro país do mundo entrega com o mesmo alcance.

Conclusão – A fé pública continua sendo humana, mesmo quando digital

A era digital não enfraquece a fé pública – ela a redefine. O que antes era exercido com papel, carimbo e presença física, hoje se projeta por certificados, videoconferências e validações criptográficas. Mas o que permanece, soberano, é o elemento humano: o notário como guardião da confiança pública.

O e-Notariado não é apenas uma inovação tecnológica – é a prova de que o serviço notarial brasileiro soube evoluir sem perder sua essência. Em um tempo de desinformação em tempo real, fraudes sofisticadas e identidades líquidas, o cartório digital é um porto seguro – acessível, moderno e juridicamente robusto.

A fé pública não é analógica nem digital. Ela é institucional. E enquanto houver notário bem formado, sistema auditável e responsabilidade funcional clara, haverá segurança jurídica – em qualquer meio.

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1 COLÉGIO NOTARIAL DO BRASIL – CONSELHO FEDERAL. e-Notariado: Manual do Usuário. São Paulo: CNB/CF, 2023. Disponível em: https://www.e-notariado.org.br. Acesso em: 10 jun. 2025.

2 CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA (CNJ). Provimento nº 100/2020 – Institui o e-Notariado. Brasília: CNJ, 2020. Disponível em: https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/3397. Acesso em: 10 jun. 2025.

3 PEREIRA, Gustavo Fiscarelli. A fé pública notarial no ambiente digital: limites e possibilidades. Revista Cartórios com Você, n. 19, 2021.

4 DOLABELA, Humberto. O notariado digital e os desafios da identidade no século XXI. Revista do CNB/SP, n. 66, jul./set. 2023. Disponível em: https://cnbsp.org.br/revista/. Acesso em: 10 jun. 2025.

5 ESTÔNIA. E-Estonia Briefing Centre. Tallinn, Estonian Government, 2024. Disponível em: https://e-estonia.com. Acesso em: 10 jun. 2025.

6 TAVARES, André Ramos. Democracia digital, identidade e segurança jurídica: o papel das instituições jurídicas no novo século. São Paulo: Saraiva, 2022.