Inventário extrajudicial com incapazes: Novas perspectivas com a resolução 571/24 do CNJ
O inventário e a partilha são procedimentos essenciais para formalizar a transmissão de bens deixados pelo falecido (de cujus) aos seus herdeiros, cumprindo-se o que dispõe o Código Civil brasileiro (arts. 1.991 a 2.027) e o CPC (arts. 610 a 673). Apesar de a transmissão de bens ocorrer no momento da morte, o inventário é necessário para identificar e descrever os bens, realizar a partilha entre meeiro e sucessores, e assegurar a devida regularização patrimonial.1
O termo “inventário” refere-se, em sentido estrito, ao ato de listar os bens deixados pelo falecido para transmissão aos herdeiros. Em um contexto mais amplo, significa todo o processo de apuração e distribuição desses bens, incluindo o pagamento de eventuais dívidas, para que o patrimônio líquido seja partilhado entre os sucessores.2
Embora a transferência de propriedade ocorra automaticamente com a morte (conforme o art. 1.784 do Código Civil3-Princípio da Saisine-), é necessário formalizar essa transmissão por meio do inventário, que define ativos e passivos, possibilitando a quitação de débitos e a partilha entre os herdeiros. Assim, com a abertura da sucessão, os bens são transferidos de maneira unificada e indivisível, cabendo ao inventário dividir esse patrimônio entre os herdeiros.
Antes da promulgação da lei 11.441/07, que alterou o art. 982 do antigo CPC4, o inventário era realizado exclusivamente pela via judicial, sem a possibilidade de intervenção do tabelião na transmissão mortis causa. Com a entrada em vigor da lei 11.441/07, o inventário passou a poder ser realizado tanto judicialmente quanto extrajudicialmente, opção mantida pelo atual CPC. Assim, o processo de apuração e partilha do patrimônio pode ocorrer em juízo ou mediante escritura pública, desde que todos os herdeiros sejam maiores e capazes, e que o falecido não tenha deixado testamento.
Essa legislação trouxe à atividade notarial uma nova atribuição, considerada mais ágil e segura, ao desonerar o Judiciário de casos de transmissão sem conflito entre as partes. O inventário extrajudicial, portanto, é realizado no tabelionato escolhido pelos herdeiros e apura o ativo e passivo da herança, com vistas à divisão do patrimônio líquido entre os sucessores, sendo um meio eficaz e menos custoso para a partilha.
O procedimento está regulamentado pelo CPC e pela resolução 35/07 do CNJ, além de normas complementares emitidas pelas Corregedorias Estaduais para a atividade notarial. Nesse sentido, a autorização legal para realizar inventário extrajudicial demandou ajustes nos serviços de cartórios, implementados por normas das corregedorias gerais de justiça estaduais e por órgãos federais, especialmente o CNJ. Esse tema foi regulamentado pela resolução CNJ 35, de 24/4/07, posteriormente alterada pela resolução CNJ 326, de 26/6/20. Essa normativa define os procedimentos, exigências e condições para a realização de inventários por escritura pública, além de tratar de escrituras de separação e divórcio.
Outra atualização importante ocorreu com a resolução CNJ 452, de 28/4/22, que incluiu os parágrafos 1º, 2º e 3º ao art. 11 da resolução 35, permitindo que “o meeiro e os herdeiros possam, em escritura pública anterior à partilha ou adjudicação, designar um inventariante.”
Essa designação visa capacitar o inventariante a “representar o espólio para obter informações bancárias e fiscais necessárias à conclusão de negócios essenciais ao inventário e ao recolhimento de impostos e emolumentos relacionados ao processo”. A nomeação marca “o início formal do inventário extrajudicial”, evitando que um atraso na abertura do inventário gere complicações fiscais para os herdeiros.5
Por fim, outra importante modificação realizada na resolução 35 foi a publicação da resolução 571 em 27/8/24 pelo CNJ, em resposta a um pedido feito pelo IBDFAM – Instituto Brasileiro de Direito de Família, permitindo que divórcios e inventários sejam realizados de forma extrajudicial, mesmo nos casos que envolvem filhos menores ou testamentos.
A escritura de inventário e partilha é facultativa, não excluindo o direito de recorrer ao Judiciário, mesmo com a opção extrajudicial disponível. A escolha pela via judicial ou extrajudicial é uma prerrogativa dos interessados, conforme art. 2º da resolução 35/07, sendo vedado que ambos os procedimentos ocorram simultaneamente para garantir a segurança jurídica. Além disso, a data do óbito não é um impedimento para a lavratura da escritura, pois a lei 11.441/07 tem aplicação imediata. Inventários podem ser realizados por escritura pública mesmo que a morte tenha ocorrido antes de 5/1/07.
No contexto do inventário extrajudicial, um dos requisitos fundamentais era a plena capacidade civil das partes envolvidas. Conforme dispõe o § 1º do art. 610 do CPC, o procedimento extrajudicial para inventário e partilha requeria que o cônjuge ou companheiro sobrevivente, os herdeiros e seus respectivos cônjuges fossem plenamente capazes; do contrário, o inventário deveria ser conduzido exclusivamente pela via judicial. Essa regra admitia a exceção de herdeiros emancipados, uma vez que, conforme o parágrafo único do art. 5º do Código Civil, a emancipação atribuía capacidade civil plena, permitindo, assim, o trâmite extrajudicial.
Ainda, a partir da leitura do §2º do art. 610 do CPC, é possível extrair duas ideias, quais sejam: Haverá a necessidade de inventário judicial sempre que houver testamento, ainda que os herdeiros sejam capazes e concordes; ou por uma interpretação sistemática e teleológica, haverá a necessidade de inventário judicial sempre que houver testamento, salvo quando os herdeiros sejam capazes e concordes.
Mediante solicitação do interessado e a apresentação da certidão de óbito emitida pelo Registro Civil de Pessoas Naturais competente, as informações sobre testamentos podem ser consultadas pela CENSEC, através do módulo do RCTO – Registro Central de Testamentos OnLine. Este sistema centraliza dados sobre testamentos públicos e aprovações de testamentos cerrados em todo o território nacional. Desde o provimento 56/16 do CNJ, tornou-se obrigatório anexar a certidão que comprova a inexistência de testamento do falecido em processos de inventário e partilha judicial, bem como em escrituras de inventário extrajudicial.
As normas do Estado de São Paulo, com o provimento 37/16, passaram a autorizar o inventário extrajudicial quando houver expressa autorização do juízo sucessório nos autos de abertura e cumprimento de testamento, desde que todos os herdeiros sejam capazes e estejam de acordo.6 O parecer 133/16-E embasou o provimento 37/16 e destacou o enunciado 600 da VII Jornada de Direito Civil, realizada em Brasília sob a coordenação do ministro Ruy Rosado de Aguiar, que estabelece: “Após a homologação judicial do testamento, com todos os interessados sendo capazes e concordes com seus termos, sem conflitos de interesse, é permitido realizar o inventário extrajudicialmente”.
Em julgamento do REsp 1.808.767/RJ7, ocorrido em 15/10/19, a 4ª Turma do STJ, sob a presidência do ministro Luis Felipe Salomão, analisou a possibilidade de inventário extrajudicial quando há um testamento válido. A Corte decidiu, de forma unânime, que o inventário extrajudicial é viável mesmo em casos com testamento, desde que este esteja registrado judicialmente ou autorizado por um juiz competente, e desde que todos os envolvidos sejam capazes, concordem e estejam assistidos por advogados.
Inicialmente, o inventário havia sido aberto judicialmente, mas os interessados solicitaram a transferência para a via extrajudicial, o que foi recusado em primeira instância e confirmado pelo TJ/RJ, com base no art. 610 do CPC/15, que requer inventário judicial na presença de testamento. Ao recorrer ao STJ, os herdeiros argumentaram que o § 1º do art. 610 permite uma exceção ao caput, uma vez que autoriza o inventário extrajudicial quando os herdeiros são capazes e concordam. O relator aceitou essa interpretação, considerando o § 1º uma exceção que permite o inventário extrajudicial em casos com testamento, desde que cumpridos os requisitos de capacidade e concordância. Ele destacou que a legislação incentiva o inventário extrajudicial para simplificar o processo e reduzir custos e burocracia, conforme artigos da LINDB e do CPC. Além disso, ressaltou que, quando todos os herdeiros são maiores, capazes e concordam com a partilha, não há necessidade de judicialização para validar um testamento já reconhecido judicialmente.
De acordo com o ponto de vista exposto, a restrição da via judicial para o inventário quando há um herdeiro incapaz tem como objetivo proteger os mais vulneráveis. No entanto, a proteção ao incapaz não deveria necessariamente obrigar o inventário judicial como única via, pois essa modalidade é, de fato, a que mais pode prejudicar o herdeiro vulnerável, na medida em que pode precisar de sua parte na herança para suprir suas necessidades básicas. Impor o processo judicial nesses casos equivale a penalizar quem já está em situação de desvantagem, o que não seria a medida mais apropriada. Ressalte-se que o Ministério Público desempenha um papel fundamental na defesa dos interesses dos incapazes e, portanto, deve fiscalizar o inventário – seja judicial ou extrajudicial. Se o incapaz estiver sendo lesado, o Ministério Público pode intervir, levando a questão ao Judiciário para proteger seus direitos.8
Uniformizando os procedimentos a serem adotados, o art. 12-A da resolução 35/07, incluído pela resolução 571/24 passa a permitir que o inventário ou partilha seja realizado por escritura pública ainda que inclua interessado menor ou incapaz, desde que o pagamento de seu quinhão ou meação ocorra em parte ideal em cada um dos bens inventariados e haja manifestação favorável do Ministério Público.
Art. 12-A. O inventário poderá ser realizado por escritura pública, ainda que inclua interessado menor ou incapaz, desde que o pagamento do seu quinhão hereditário ou de sua meação ocorra em parte ideal em cada um dos bens inventariados e haja manifestação favorável do Ministério Público. (incluído pela resolução 571, de 26/8/24)
Conforme o § 1º do art. 12-A incluído da resolução 571, é proibida a realização de atos que disponham sobre os bens ou direitos de herdeiros menores ou incapazes no inventário extrajudicial. A proibição busca evitar que o patrimônio desses herdeiros seja comprometido sem a devida proteção judicial, assegurando que nenhuma decisão que envolva a alienação ou modificação de seus direitos seja tomada fora dos parâmetros legais. Essa medida preserva o patrimônio do incapaz até que haja uma manifestação apropriada de tutela ou curadoria.
Ainda, o § 2º do mesmo artigo acrescenta que, caso o falecido tenha deixado um herdeiro ainda não nascido (nascituro), a conclusão do inventário extrajudicial deverá aguardar o registro do nascimento, confirmando a filiação, ou a comprovação de que o nascituro não nasceu com vida. Essa previsão garante que o inventário extrajudicial contemple todos os herdeiros de forma adequada, inclusive o nascituro, evitando que direitos sejam omitidos ou subestimados durante o processo de inventário. A espera pelo registro de nascimento do nascituro assegura que o processo seja finalizado de maneira justa e completa, sem prejuízo aos herdeiros.
Por sua vez, o § 3º exige que a escritura pública de inventário, nos casos que envolvem herdeiros menores ou incapazes, tenha eficácia condicionada a uma manifestação favorável do Ministério Público. O tabelião de notas deve encaminhar a documentação ao Ministério Público para análise e parecer. Por fim, caso o Ministério Público ou um terceiro interessado apresente impugnação ao procedimento, o inventário deverá ser remetido ao juízo competente para apreciação. Essa medida é uma salvaguarda adicional, pois possibilita que o Judiciário intervenha caso surjam dúvidas ou discordâncias relevantes que possam comprometer a lisura do inventário extrajudicial. Ao remeter o processo ao juízo competente, a resolução reforça o compromisso com a proteção dos interesses dos incapazes, permitindo que questões controversas sejam resolvidas judicialmente, garantindo a justiça e transparência.
Ao tornar o processo mais célere e menos burocrático, a resolução 571 do CNJ contribui para reduzir o impacto financeiro e emocional sobre herdeiros incapazes e suas famílias, ao mesmo tempo em que garante a devida proteção ao patrimônio. Essas mudanças promovem uma integração mais eficaz entre segurança jurídica e celeridade processual, mostrando-se como uma solução moderna e equilibrada para o inventário com incapazes.
Sejam felizes!