Um sopro de vida na pandemia: Lei da Adoção Humanizada – Por Madeleine Lacsko
Projeto da deputada Janaína Paschoal sistematiza formas para atender o que o Judiciário já diz ser o melhor interesse da criança.
Há muitos anos o Brasil faz um esforço coletivo gigantesco para moralizar a fila da adoção. O processo era tão caótico que a gambiarra – registrar o filho de outros como próprio – ganhou o nome de “Adoção à Brasileira”. Não são esses os casos que levaram a uma real necessidade de colocar ordem na história. Onde falta documento e sobra amor as coisas se ajeitam. A questão é onde se criou brecha para banditismo.
Houve inúmeros escândalos de venda e tráfico de bebês, o que criou clamor popular para que adoções fossem documentadas com mais ordem e clareza. Criou-se a conhecida fila da adoção, que funciona em todo o país e é acompanhada de perto pela Justiça. É pelo excesso de zelo que acabamos tirando da equação um dos fatores mais importante na formação do vínculo entre pais e filhos: o elemento humano. Reparar este ponto é a intenção do Projeto da Adoção Humanizada, de autoria da deputada Janaína Paschoal.
Temos um sistema organizado, que tenta ao máximo preservar as famílias, ou seja, manter o vínculo e o convívio da criança com a família biológica. Infelizmente, nem sempre isso é possível. Também se tenta fazer com que todas as adoções sigam os trâmites legais, o que foge da realidade. A criança abandonada pelos pais acaba muitas vezes abrigada por outros parentes, amigos, vizinhos, alguém que se afeiçoa. São geradas situações humanas únicas, diferentes umas das outras e que não podem ser confundidas com ilegalidade ou venda de criança.
Embora a legislação seja cristalina quando fala que a prioridade é o melhor interesse da criança, há uma visão muitas vezes burocrática e distorcida do que isso significa. Para uma grande maioria de advogados, promotores, defensores, juízes e cidadãos, o “melhor interesse” é ter de fato suas necessidades materiais, psicológicas, sociais e de segurança atendidas. Mas há quem se agarre à burocracia e coloque um pedaço de papel acima das situações humanas.
Janaína Paschoal, deputada estadual em São Paulo, coletou vários relatos de situações reais e montou a “Frente Parlamentar pela Celeridade na Adoção de Bebês”, que ouviu diversos integrantes da sociedade civil até chegar numa versão final do projeto. Convém deixar claro que eu própria batizei a iniciativa de Projeto da Adoção Humanizada. É disso que se trata, de um ajuste necessário a um sistema feito com a melhor das intenções, que realmente solucionou diversas irregularidades e não só pode como deve ser melhorado.
Quantas das pessoas que você ama se encaixam no tipo de pessoa que você imagina que deveria amar? Esse é o problema central da fila da adoção. Por um lado, ela organiza. Por outro, tira oportunidades profundamente humanas. “É do encontro de almas que nascem as famílias”, diz a justificativa da deputada Janaína Paschoal. Não há motivo para impedir esses encontros se eles estiverem dentro da lei.
“Muitas vezes, ao se cadastrarem para adoção, as famílias apontam o desejo de adotar bebês; entretanto, ao visitarem as instituições de acolhimento, como bem destacado pela Professora Maria Berenice Dias, se apaixonam por crianças mais maduras, ou mesmo por adolescentes. Igual situação pode ocorrer relativamente às crianças com deficiência, seja física, seja mental. Com efeito, atualmente, o formalismo no processo de adoção é tal, que, durante os muitos cursos ministrados, os candidatos a adotar são orientados a NÃO visitarem instituições de acolhimento, justamente para não sofrerem a “tentação’ de desejar adotar uma criança, ou adolescente, em especial, burlando a fila”, explica a deputada Janaína Paschoal.
A fila da adoção é importante e, sobretudo, o cadastro dos adotantes, a investigação sobre eles e o treinamento que recebem. Mas é um erro ignorar solenemente todas as mais complexas situações humanas que envolvem alguém abrir mão de um filho e outro alguém amar como próprio um filho que não é seu biologicamente. Suponha que a mãe, por qualquer razão que você imagine, não possa cuidar de forma decente do próprio filho mas tenha plena confiança em alguém que está disposto a fazê-lo. Por que imaginar que necessariamente é uma venda de criança e recorrer à fila?
“Se a mãe manifesta o desejo de entregar, essa criança não tem que ir para família acolhedora, (…) não é isso o que a mãe quer. A mãe quer que o filho seja entregue à adoção. Se [a mãe] entrega direto, o que acaba fazendo a justiça quando descobre? Entra com busca e apreensão. Chega a tirar a criança daquela família que ela conheceu desde que nasceu (…), para então processar essas pessoas e depois disponibilizá-la [a criança] para adoção. Se a mãe escolhe alguém para adotar, e indica, esta pessoa que ela indica é que deve ser trazida para o Poder Judiciário, para ela se submeter a essa testagem para ver se ela tem condições. Isso é furar a fila de adoção? Não. É respeitar até um pouco a vontade da mãe”, defende a advogada Maria Berenice Dias.
Dramas humanos que não precisam existir
Todos nós, que somos jovens há algumas décadas, conhecemos casos da tal “Adoção à Brasileira”, em que alguém registra filho alheio como próprio. Existe previsão criminal para o ato mas, levando em conta a nobreza e a ausência de maldade ou intenção de se aproveitar de alguém, a Lei Penal não pune na prática essas pessoas. No âmbito civil, no entanto, a punição é a mais dolorida possível, a busca e apreensão da criança, retirada da família.
Um caso citado pela Defensoria Pública do Estado de São Paulo nas audiências é da anulação de uma adoção ONZE ANOS depois de sua efetivação. Depois de todo esse tempo, o Judiciário paulista considerou que a mãe não havia sido citada pessoalmente no processo, portanto a adoção não era formalmente válida. Durante todo esse tempo a mãe que não foi citada jamais procurou ter qualquer tipo de contato com a criança. A família foi desfeita a canetada, não sabemos qual o trauma que restou.
O advogado Hélio Ferraz de Oliveira conta o pesadelo que viveu durante os 7 anos e meio em que tramitou o processo de adoção de seus 3 filhos, irmãos. “Durante boa parte dos 7 anos e meio de processo até sua concretização, a Defensoria Pública simplesmente peticionava, fazia petições repetitivas requerendo o acolhimento das crianças, requerendo que as crianças fossem retornadas ao acolhimento e colocando a família biológica como hipossuficiente por conta da drogadição. (…) A vivência que eu tive, no meu processo pessoal, foi da Defensoria buscando o acolhimento institucional dos meus filhos de todas as formas, requerendo que eles retornassem ao acolhimento, sendo que a gente falava de uma situação de drogadição, de violência, de abuso, de uma série de situações. Havia mais do que comprovada a impossibilidade de retorno dos meus filhos para a família biológica, contudo a insistência da Defensoria Pública, infelizmente, era nesse sentido. Foram 7 anos e meio em que nós brigamos para que eles tivessem o direito de ter o meu sobrenome. Eles já se encontravam conosco, eles já tinham a vinculação com a minha família, mas eles tinham a dificuldade de sobrenome.” , contou.
“Em Santa Catarina, por exemplo, ainda que com um voto divergente, o Tribunal de Justiça retirou dois irmãos gêmeos de um casal, quando os garotinhos estavam próximos de completar três anos de idade, por entender que o genitor havia registrado os meninos indevidamente. Assustadoramente, no acórdão, restou consignado que “a ordem cronológica dos inscritos no cadastro nacional de adotantes não pode ser afastada”, não podendo “o Poder Judiciário referendar uma situação eivada de ilegalidades, havendo fortes indícios de fraude e má-fé por parte dos autores, que agiram deliberadamente com a intenção de burlar o sistema oficial de adoção”, relata a justificativa do projeto. No caso concreto, nem mãe nem pai biológico haviam pedido as crianças de volta. As quatro filhas mais velhas haviam sido abusadas pelo marido da mãe, que voltou a conviver com ele.
“A Deputada Estadual Adriana Borgo, ela própria filha adotiva e mãe de vários filhos adotivos, contou, emocionada e emocionando, que, ao visitar uma instituição de acolhimento, a princípio para buscar a filha que o sistema de adoção escolheu como sua, uma bebê ruiva de olhos claros, apaixonou-se por uma bebê negra com deficiência. Por força desse encontro de almas, a Parlamentar solicitou ao magistrado que lhe autorizasse adotar a criança que sentiu ser sua filha, valendo frisar que a bebê já havia sido ‘devolvida’ em situações anteriores. Resta evidente que, não fosse essa marcante visita, a filha da Deputada Adriana Borgo, muito provavelmente, ainda estaria em uma instituição”, relata a deputada Janaína Paschoal.
O deputado Delegado Olim acompanhou casos de crianças abandonadas durante muitos anos. Infelizmente, é rotina no serviço policial. Lembrou de um caso em que um homem encontrou um bebê dentro de uma caixa ao sair de um restaurante. Uma menina. Comprou todas as batalhas jurídicas necessárias para que ela passasse a ser parte de sua família legalmente. Fosse hoje, isso não seria possível na prática, embora a lei e o entendimento dos tribunais superiores permitam.
Mesmo durante a pandemia, houve diversos pedidos para que crianças já acolhidas por famílias dispostas a adotá-las fossem retiradas de casa e levadas a abrigo por problema com documento ou desobediência da fila de adoção. Eu tenho dificuldades para entender o que motiva a elaboração de um pedido desses e não sei o que faria se estivesse no lugar de quem é instado a devolver uma criança a um abrigo na pandemia de Coronavírus. Felizmente, não é sempre que o Judiciário acata.
“A carência de políticas públicas para facilitar a inclusão de crianças em famílias substitutas aptas a tanto e a inexistência de recursos destinados a ações conjugadas em todo âmbito federativo com intuito de facilitar a adoção legal acabam por estimular caminhos indubitavelmente questionáveis do ponto de vista formal, mas irrefutáveis do ponto de vista social”, decidiu o ministro Ricardo Villas Boas Cueva, do STJ, ao decidir em maio que uma criança não seria retirada da família que a acolheu em São Paulo no último mês de maio.
“Esta Corte tem entendimento firmado no sentido de que, salvo evidente risco à integridade física ou psíquica do infante, não é de seu melhor interesse o a acolhimento institucional ou o acolhimento familiar temporário. A criança deve ser protegida de abruptas alterações, sendo certo que no presente momento é preferível mantê-la em uma família que a deseja como membro do que em um abrigo, diante da pandemia da COVID19 que acomete o mundo”, diz sentença do STJ contrariando pedido de colocar num abrigo criança acolhida por uma família que tem desejo de adotar. No caso concreto, os pais biológicos consentiram com o abrigamento porque são usuários de drogas e até foram ao batizado da criança, organizado pela família que pretende fazer a adoção.
Existe todo um sistema de acolhimento temporário de crianças, formado por pessoas que não têm interesse em necessariamente adotar, mas prestam este serviço específico de acolher temporariamente. Há também os abrigos. Que me perdoem a franqueza, mas nem animal de estimação eu consigo escolher por catálogo e sorteio, como se sugere na fila da adoção. A burocracia faz sentido até o momento em que barra a criminalidade, deixa de ter sentido quando barra o elemento humano que é parte da dignidade de cada um de nós.
Ouso dizer que é indigno dizer a alguém que tem o coração tocado pelo desejo de adotar como quer que seja a criança. Amor de pai e de mãe não tem pré-requisito. Nem filho biológico se escolhe de que jeito vai ser. Não é à toa que temos o drama das devoluções de crianças que eram exatamente como descrito pelos adotantes, isso não é vínculo nem garante nada. Relações humanas têm razões que a razão desconhece. Sem levar essa realidade em conta, não há sistema de adoção que dê certo para as crianças. Leis não são feitas para os seres humanos perfeitamente racionais que queremos ser, são feitas apenas para quem somos.
O que muda com o Projeto da Adoção Humanizada
O projeto não tem mudanças substanciais em leis nem no sistema. A lei permanece como está, as exigências para adotar são as mesmas, precisa se inscrever, atender os requisitos, fazer o processo preparatório e todo o mais. A deputada Janaína Paschoal propõe uma normatização que sistematize no Estado de São Paulo o que os Tribunais Superiores já entendem como a melhor alternativa de fato para se respeitar o direito da criança a ser prioridade, ter seus melhores interesses atendidos e desfrutar da convivência familiar.
As mudanças seriam a possibilidade de famílias dispostas a adotar visitarem crianças cuja documentação para adoção está em processo e acolherem essas crianças até que se decida a situação com os pais biológicos. Caso realmente possam ser adotadas, a família que acolhe terá prioridade. O tempo de duração do processo já é a sentença sobre a bagagem emocional da criança.
Confira o texto completo:
A ASSEMBLEIA LEGISLATIVA DO ESTADO DE SÃO PAULO DECRETA:
Artigo 1º. No Estado de São Paulo, toda família que se encontrar na fila para adoção poderá funcionar como família acolhedora, desde que participe de preparação para a função e seja cientificada da possibilidade de a criança ou adolescente acolhido voltar para a família biológica.
Parágrafo Único- No caso do “caput”, a família que funcionar como acolhedora terá prioridade na adoção da criança ou adolescente por ela acolhido.
Artigo 2º. No Estado de São Paulo, considerando o superior interesse das crianças e adolescentes, salvo situação de maus tratos, subtração, ou compra e venda, nenhuma criança ou adolescente será retirado de seus pais, responsáveis ou guardiões de fato, sob a alegação de irregularidade na adoção.
Artigo 3º. No Estado de São Paulo, haverá busca ativa de famílias para as crianças e adolescentes que se encontrem na fila para adoção. Parágrafo Único- A busca ativa também poderá ser feita relativamente a crianças e adolescentes que se encontrem acolhidos, porém ainda não cadastrados no sistema de adoção, seja nacional, seja estadual, ou mesmo regional.
Artigo 4º. As famílias já habilitadas para adoção poderão visitar as instituições de acolhimento, com o fim de conhecer crianças e adolescentes que se encontrem aptos a serem adotados e, uma vez ocorrendo identidade entre as partes, será possível solicitar a adoção por afinidade ou “intuitu personae”.
Parágrafo Primeiro- As visitas de que trata do “caput” serão organizadas pelas próprias instituições de acolhimento, que determinarão horários e duração, respeitando a rotina dos acolhidos, que não poderão ser fotografados ou expostos, durante referidas visitas.
Parágrafo Segundo. A adoção de que trata o Caput somente será deferida se não houver famílias interessadas no mesmo perfil de criança ou adolescente em posição mais favorável que a dos solicitantes na fila.
Artigo 5º. À luz do disposto no artigo 227 da Constituição Federal, no Estado de São Paulo, fica assegurada absoluta prioridade na tramitação dos processos e procedimentos referentes à adoção.
Artigo 6º. Esta lei entrará em vigor na data de sua publicação.
Talvez um dia a ciência nos explique tudo sobre o amor e os vínculos de maternidade e paternidade. Por enquanto, apenas sentimos e sabemos que isso existe, é concreto e complexo. Conheço inúmeras pessoas que sonharam ser mães e pais, planejaram, foram atrás de métodos de inseminação, adoção de embriões, enfim, todos conhecemos essas histórias de amor que são legítimas e fazem parte da natureza e da dignidade humana.
A minha, particularmente, é outra. Não sou das mulheres que têm vontade de ser mãe desde pequenas. Na verdade, nunca nem tive vontade de ser mãe. Aliás, nem sei se sou mãe na plenitude da palavra, acho mais é que sou mãe do meu filho.
A maternidade me arrebatou meio por milagre, não imaginei que seria possível quando a ciência disse que não era. Eu pude viver a minha história do amor que o acaso traz, legítimo e parte da dignidade da vida humana. Houve muita gente contrária, mas não havia lei que me impedisse. Tomara que outras pessoas ganhem, com esse projeto, o direito a viver a felicidade que o acaso lhes deu.