Usucapião de imóvel arrematado: o ocupante ex-mutuário pode se tornar o novo dono?

A perda de um imóvel em leilão é uma situação dramática para o ex-mutuário que, por adversidades financeiras, não conseguiu honrar seu financiamento. Após a arrematação por um terceiro, a permanência do antigo morador no local gera uma posse juridicamente frágil, classificada como precária e injusta. Surge, então, uma dúvida complexa e recorrente no universo jurídico: seria possível que essa posse, com o decurso de um longo tempo, se converta em propriedade por meio da USUCAPIÃO? A resposta, embora contraintuitiva, admite uma remota possibilidade, condicionada a requisitos extremamente rigorosos e de difícil comprovação, tornando a consulta a um advogado especialista em direito imobiliário um passo indispensável para analisar a viabilidade de tal pretensão.

Inicialmente, é crucial entender a natureza da posse do ex-mutuário. Após a consolidação da propriedade em nome do terceiro arrematante (aquele que comprou o imóvel no leilão), a posse do ocupante perde seu fundamento legal. Ele, que antes possuía o bem com base em um contrato, passa a ocupá-lo por mera tolerância do novo dono ou, mais comumente, contra a vontade deste. Essa posse é classificada como “precária”, pois deriva do abuso de confiança de quem deveria ter restituído o bem e não o fez. Conforme o Art. 1.200 do Código Civil, a posse precária é uma modalidade de “posse injusta”, o que, em regra, impede a aquisição da propriedade por usucapião, pois lhe falta o requisito essencial do “animus domini” – a intenção de ser dono.

O “animus domini” é o pilar de qualquer modalidade de usucapião. Não basta apenas ocupar o imóvel; é preciso possuí-lo “como se seu fosse”, desconhecendo qualquer poder superior sobre a coisa e exteriorizar esse modo de possuir. O possuidor precário, como o ex-mutuário, tem plena ciência de que o imóvel não lhe pertence mais e que sua ocupação é irregular. Ele sabe que existe um novo proprietário (o arrematante) com o direito de reaver o bem a qualquer momento, geralmente por meio de uma Ação de Imissão na Posse. Portanto, a simples passagem do tempo, por si só, não transforma essa posse viciada em uma posse legítima para fins de usucapião, pois o caráter com que a posse foi adquirida tende a se manter, conforme o Art. 1.203 do Código Civil.

Aqui reside o ponto nevrálgico e importantíssimo da questão: a INTERVERSÃO DO CARÁTER DA POSSE, que não pode ser ignorada. A única e excepcional hipótese em que o ex-mutuário poderia pleitear a usucapião é se ocorrer uma transmutação, uma mudança radical na natureza de sua posse, que indubitavelmente precisa ser comprovada. Ele precisa deixar de ser o “possuidor que sabe que deve sair” e passar a agir, de forma pública e inequívoca, como o único e verdadeiro dono do imóvel. Não se trata de uma mudança de pensamento, mas de atos exteriores e ostensivos de oposição direta ao direito do arrematante, demonstrando a todos que ele não mais reconhece a propriedade alheia.

A comprovação dessa interversão é o maior desafio jurídico e probatório. Para que seja reconhecida, o ocupante deve demonstrar, de forma cabal, atos que vão muito além da simples moradia. Por exemplo, realizar benfeitorias substanciais no imóvel, alterar sua estrutura, pagar todos os impostos (como o IPTU) em seu próprio nome por anos a fio, e, principalmente, resistir ativamente a qualquer tentativa de desocupação. A simples recusa em atender a uma notificação extrajudicial não é suficiente. É necessário um conjunto de atos que, vistos de fora, passem a imagem de que ele é, de fato, o proprietário.

O segundo elemento crucial para essa tese é a INÉRCIA qualificada do arrematante. Não basta que o novo proprietário não peça o imóvel de volta; ele precisa se manter completamente INERTE, omisso e negligente na defesa de seu patrimônio por todo o longo prazo exigido pela lei (que pode variar, conforme as peculiaridades do caso). Se o arrematante, mesmo que sem sucesso inicial, ingressa com uma Ação de Imissão na Posse ou protesta judicialmente contra a ocupação, ele quebra o requisito do “prazo ininterrupto e sem oposição” da usucapião. A inércia do arrematante, portanto, funciona como um fator que, somado aos atos de oposição do ocupante, pode ser interpretado pelo Judiciário como um abandono do direito de propriedade, abrindo margem para a interversão.

Mesmo que a interversão da posse seja comprovada, o processo não termina aí. O ocupante ainda precisará preencher todos os demais requisitos da espécie de usucapião pretendida, sendo a mais comum nesses casos a Usucapião Extraordinária (Art. 1.238 do Código Civil). Esta modalidade exige a posse ininterrupta e sem oposição por 15 anos, prazo que pode ser reduzido para 10 anos se o possuidor houver estabelecido no imóvel a sua moradia habitual ou nele realizado obras ou serviços de caráter produtivo. Note que o prazo só começa a contar a partir do ato inequívoco que configurou a interversão da posse, e não do dia da arrematação.

Em conclusão, embora a aquisição de um imóvel arrematado por usucapião pelo ex-mutuário seja uma tese juridicamente possível, sua aplicação prática é rara e de altíssima complexidade. Depende de uma combinação muito específica de fatores: atos ostensivos e comprovados de inversão do ânimo de dono, uma inércia total e prolongada do arrematante e o cumprimento de todos os prazos e requisitos legais. Dada a fragilidade da posse originária e a dificuldade probatória, qualquer pessoa que se encontre nessa situação deve, impreterivelmente, buscar a orientação de um Advogado especialista em usucapião e direito imobiliário. Apenas uma análise técnica e aprofundada do caso concreto poderá determinar se existe um caminho viável ou se a pretensão se revela uma aventura jurídica sem chances de êxito.

Fonte: Julio Martins